O medo da morte

Nilza Rezende

Desde menina, eu tive medo da morte. Muito mais medo, eu diria, do que uma menina de cinco, sete, dez anos costuma ter. Muito mais medo que uma adolescente costuma ter. Crianças e jovens não costumam perder tempo com a morte, pelo contrário, faz parte da juventude estar sempre no aqui e no agora, presente e prazeres. Eu não. Eu não podia escutar que alguém tinha morrido, eu não podia ler uma matéria sobre morte, eu não podia ouvir falar da morte que eu me desequilibrava, virava um fiapo. A morte era um escuro que eu não sabia onde ia dar. E a noite, com seu escuro, era a morte ao meu lado. Por isso, minha mãe foi trocando minhas companhias de quarto. Primeiro, dormi com Helena, minha irmã caçula. “Quem sabe se ela dormir com a Cláudia, mais velha?” Não resolveu. “O Sergio, talvez ele dê conforto…” “– Mas você já disse boa noite mil vezes, Nilzinha, agora dorme” – suplicava meu irmão diante de minhas infinitas despedidas noturnas, prenúncio de noites em claro. Medo do escuro e medo da morte a se confundirem. Medo do abandono, descobri mais tarde, e da solidão.

Nada a ver com meus seis irmãos. Eles tinham bons sonos e espero que também bons sonhos. Não por acaso eu era a asmática e magricela, a sensível e a chorona. Eu era “a doentinha”. Justo a que tinha o nome da mãe, a Nilzinha, tadinha… Fraquinha e medrosa, resolveram por bem me poupar dos enterros que aconteceram ao longo da minha infância e juventude. “Ela fica muito impressionada”, “você não deve ir”, “não precisa ir”, “é melhor a Nilzinha não saber”…

Assim se passaram anos, assim passa a vida. Não chorei de corpo presente a morte de tios, de cunhados, de amigos. Pouparam-me dos cemitérios, dos defuntos, dos enterros, do choro e da tristeza. Pouparam-me das coroas de flores.

Em vão, arriscaria eu. A questão era outra.

E, naturalmente, não consegui me poupar dos anti-depressivos e das terapias – inúmeras -, psicanalíticas ou não. Quase todas com o objetivo de valorizar a auto-estima, desfazer a casca de fraquinha e fazer brotar a força que havia em mim, que, de alguma forma, me fez, apesar da asma, das pernas finas e do medo, estar viva. Apesar da morte que eu julgava iminente e das noites mal dormidas, nas quais um grande cachorro de pelúcia se transformava em um potencial assassino. O cachorro bem que me ameaçou, mas não me derrubou… Aqui estou!

Apesar dos medos, casei duas vezes e tive muitos namorados. Sofri muito por homem, confesso. Amores interrompidos quase sempre bruscamente. Quase sempre por desejo/ordem deles. “De início, eles me amam. Depois, eu me apaixono por eles. E aí eles me largam” – assisti muito de perto a essa tragédia em três atos. Por quê? Ora, a resposta é curta e simples: o medo do abandono me faz enlouquecer, esquecer que existo, só olhar o homem, morrer de ciúmes, perturbá-lo. E aí, presos na gaiola, eles desistem de mim. Não à toa meu primeiro romance se chama Um deus dentro dele, um diabo dentro de mim (Ed Record, 2003).

Mas o que o amor tem a ver com a morte?

Na morte de minha mãe, há seis anos, um ano depois da morte de meu irmão José, o primogênito, imaginei que ia pirar. Imaginaram certamente que eu ia pirar. Pois eu não pirei. Aliás, fui eu que acalmei meus sobrinhos e filhos. Fui eu que maquiei minha mãe morta.

Há três anos, foi meu pai quem morreu. Eu estava ali na hora da sua partida. Eu o vi morrer. Também estava na hora em que fecharam o caixão e, de alguma forma, fui eu que organizei como descer o caixão pelas escadas estreitas do prédio.

Eu vivi as mortes dessas pessoas tão queridas sem sucumbir. A morte não veio como uma bruxa desdentada a me ameaçar, a querer me carregar junto; ummonstro que arrancaria pedaços das minhas pernas, me paralisaria, me deixaria na cama, deprimida, por meses e meses tal qual as mulheres de antigamente, vestidas de preto, enlutadas. Sim, é claro que a morte de pais velhos não é igual à morte de filhos, por exemplo, muito mais inesperadas e traumáticas. Eu bem sei, mas de qualquer jeito, eu achava que não suportaria ver meus pais mortos. Suportei. Vivi aquilo e não me despedacei. Aqui estou!

E o amor?

Ano passado, quando eu senti que o amor novamente ia me largar, e eu acreditava que não poderia viver sem meu namorado – eu sucumbiria -, eu já estava (novamente!) fazendo terapia, que retomei porque senti que precisava me fortalecer para enfrentar novos desafios e vencer os medos, ainda latentes e insistentes: medo do fim, do abandono, da morte, da separação.

Então, um dia, meu psiquiatra me disse: “Calma, Nilza. Você não é mais a menina que ficou na porta do colégio esquecida. Você tem recursos para sobreviver a esta ou a qualquer outra perda, se ela de fato ocorrer. E ela ainda nem aconteceu. Mas você tem recursos, tem pessoas que podem te ajudar, tem seu trabalho, tem seus amigos, tem seus filhos, sua netinha, tem suas aulas, seus livros, sua escrita, tem sua terapia, tem sua casa. Você não é mais aquela menina que de fato não tinha recursos para enfrentar o medo, medo do escuro, medo da morte, medo do abandono. Não é mais aquela menina que ficou na porta da escola e que não podia realmente sair dali, não tinha recursos para chegar até em casa”.

Esta foi a chave. A chave que me abriu várias portas.

Respirei aliviada e guardei este segredo: eu tenho recursos. Sim, eu tenho recursos, posso dispor deles, se precisar – são meu trunfo. Eu não estou só, não estou abandonada, eu tenho recursos.

Pois enfrentei a separação (yes, ela aconteceu!), continuei a terapia, viajei sozinha para Malta para estudar inglês, escrevi um novo livro, fiz novos amigos, andei por aí… e voltei para o namorado! Aqui estamos!

O que tem a ver essa história com a morte?

Não sei bem, mas penso que temos recursos para enfrentar nossos problemas. Recursos para enfrentar separações e perdas, das mais banais às mais cruéis. Recursos para enfrentar a morte de pessoas queridas. Recursos para enfrentar a nossa própria morte, se ela vier devagarinho, em câmera lenta. Temos recursos, mesmo que às vezes eles pareçam adormecidos ou escondidos.

Uma coisa é certa: quanto mais recursos tivermos, melhor passaremos pelas pedras do caminho.

É preciso ter amigos, viver bem, ouvir boas músicas, ler bons livros, desfrutar alegrias, nos apegarmos a boas companhias, viver intensamente as experiências e oportunidades, construir afetos, criar a nossa rede de apoio e de solidariedade, semear nossos recursos. Acredito que são esses recursos que salvam aqueles que enfrentam lutos terríveis, e que conseguem, apesar de, resistir e viver, muitas vezes até de uma forma mais produtiva, apesar das dores.

Sim, a vida é quem mais nos capacita para a morte. Nós, pessoas adultas, não somos mais menininhas e menininhos assustados e frágeis, com medo de serem largados na porta da escola e na vida, com medo de serem abandonados ou até devorados por monstros de verdade ou de pelúcia…. devorados pelo escuro, pela tal da senhora morte. Não, não somos mais. Somos capazes de muito mais do que imaginamos, com certeza. Na vida e diante da morte.

Nós temos recursos. Salve eles!

 

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Nilza Rezende é professora, escritora, Mestre em Literatura pela PUC-Rio e autora dos romances Um deus dentro dele, um diabo dentro de mim; Dorme, querida, tudo vai dar certo e Bocas de mel e fel, dentre outros livros. www.nilzarezende.com.br

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